sexta-feira, 23 de agosto de 2013

Rebelião Taiping

A Rebelião Taiping (1851-1864) foi um dos conflitos mais sangrentos da história, um confronto entre as forças da China imperial e um grupo inspirado por um místico autoproclamado, chamado Hong Xiuquan (1813-1864), que se dizia cristão e também intitulava-se irmão de Jesus Cristo. Seu objetivo era criar uma nova cultura, substituindo a tradição confucionista e budista por algo "novo" - moldado conforme às suas ideias.

A rebelião começou na província de Guangxi e estendeu-se rapidamente pela região do Rio Azul. Em 19 de março de 1853, os rebeldes tomaram Nanquim e fizeram daquela cidade a capital de seu movimento. Posteriormente, desfecharam um ataque malsucedido contra a Pequim. As tropas imperiais foram auxiliadas por militares ingleses e mercenários estadunidenses e esmagaram a revolta reconquistando Nanquim, num cerco onde pereceu Hong Xiuquan. A Dinastia Qing, no entanto, jamais se restabeleceu da guerra civil e a ideologia dos revoltosos de Taiping — um misto de cristianismo e teorias radicais de igualdade social — influenciou grupos revolucionários posteriores, inclusive o Partido Comunista Chinês.

Calcula-se que entre 30 e 50 milhões de pessoas morreram em consequência direta do conflito. Aliás, no período compreendido entre 1850 e 1873, a população da China foi reduzida em mais de 60 milhões de pessoas, como resultado de rebeliões, guerras, da seca e da fome.

Prelúdio: A Guerra do Ópio 

Durante grande parte da história registrada, um observador imparcial teria considerado a China a civilização tecnologicamente mais avançada do mundo. Os chineses eram auto-suficientes, auto-contidos e auto-satisfeitos. Para restringir a contaminação alienígena ao mínimo, o governo Manchu da dinastia Qing confinava os ocidentais em poucos portos. Os mercadores europeus tinham de pagar no ato e em prata, se quisessem qualquer mercadoria chinesa - principalmente chá, sedas e porcelanas. Os chineses certamente não queriam nenhuma das mercadorias de qualidade inferior dos navegantes bárbaros de Portugal, Holanda ou Inglaterra. Em longo prazo, a China estava drenando moeda demais para fora da Europa, e o Ocidente precisava arranjar algo para vender aos chineses, a fim de recuperar seu dinheiro.

Ópio era a solução perfeita. A Inglaterra era abastecida regularmente pela Índia, e a demanda chinesa por narcóticos estava crescendo, à medida que o ataque violento das ideias e tecnologias estrangeiras minava sua estrutura social. Infelizmente para o Ocidente, o governo chinês bania completamente e totalmente o ópio - a não ser quando ligado a uma propina conveniente. Isso não foi, a princípio, um grande problema. As propinas eram normalmente menores do que as taxas alfandegárias que os europeus teriam de pagar no comércio legal, mas, então, quase por acidente, a corte chinesa nomeou um comissário honesto para erradicar autoridade para combater o ópio, em vez de extorquir os mercadores. Quando ele confinou a comunidade estrangeira e destruiu 10 mil arcas de ópio, os ingleses e franceses declararam guerra.

Embora a China houvesse passado grande parte da história como a mais avançada civilização da Terra, ou europeus haviam ultrapassado os chineses, desde muito, no aspecto mais importante - a tecnologia militar. Na primeira Guerra do Ópio, as forças anglo-francesas afundaram a frota chinesa e destruíram seu exército quase sem sofrer um só arranhão. Com o tratado de paz de 1842, os chineses legalizaram o comércio do ópio e estabeleceram relações diplomáticas com os europeus em um nível de igualdade; prometeram parar de chamar os europeus de bárbaros e permitiram que eles abrissem postos de comércio (feitorias) em portos designados ao longo da costa e de rios navegáveis. Junto com os mercadores seguiram os missionários cristãos, que se espalharam pelo interior.

Cristianismo na China

Os "ataques" à sociedade da China pelo Ocidente estavam levando muitos chineses a reconsiderar antigas verdades espirituais, e o cristianismo começou a fazer avanços importantes. Isso não era completamente novo. os cristãos vinham fuçando na China havia séculos. O variantes nestoriana da religião chegara com as caravanas persas muito tempo antes. Os missionários jesuítas haviam chegado com os navegadores portugueses a partir de 1500. Ambas as tendências haviam tido sucesso limitado, mas, até a Guerra do Ópio, a cristandade nunca passara de um interessante culto estranho a que alguns excêntricos às vezes se convertiam. 

Hong Xiuquan

Hong Xiuquan
Hong Xiuquan viria a ser um desses excêntricos. Ele morava no extremo sul, no interior de Hong Kong e Cantão, onde se virava como mestre-escola. Uma noite, em 1837, enquanto Hong se recuperava de uma série de doenças, um homem de cabelos dourados, vestido com um manto preto, apareceu-lhe numa visão, mandando que ele purificasse a Terra. Como a visão não fazia sentido, Hong a tirou da cabeça por alguns anos e continuou com sua vida. Então sua carreira empacou, depois que ele foi repetidamente reprovado no exame do serviço público que era exigido para progredir na sociedade chinesa.

Um dia, em 1843, enquanto vagava pela grande cidade depois de ter fracassado mais uma vez no exame do serviço público, Hong recebeu de presente uns panfletos protestantes. Converteu-se ao cristianismo e começou a estudar com os missionários batistas americanos. Logo reconheceu os elementos cristãos da sua quase esquecida visão. Percebeu que o próprio Deus era o homem na visão, e então lembrou que Deus declarara ser ele, Hong, seu segundo filho, o irmão mais moço de Jesus.

Adoradores de Deus

Algum tempo mais tarde, Hong fundou a Sociedade dos Adoradores de Deus. A princípio ele manteve sua adoração pelo Messias em segredo, e simplesmente pregava uma fusão salvadora entre Confúcio e os principais cristãos, com uma forte ênfase nos Dez Mandamentos. Quando seus seguidores aumentaram, ele atacou os adoradores de ídolos, destruindo o confucionismo e os santuários ancestrais. Hong fundou comunidades na sua zona rural, batizando mais e mais convertidos, até que, em 1850, os Adoradores de Deus chegaram a 20 mil seguidores.

Exército Santo

Os Adoradores de Deus se afastavam tanto do comportamento tradicional chinês que os atritos se tornaram inevitáveis. Eles se organizaram como paramilitares, e o primeiro choque com as autoridades Qing foi em dezembro de 1850.

Os taipings proibiam o ópio, a prostituição, o homossexualismo e o álcool. Os homens e as mulheres eram mantidos completamente separados, embora ambos os gêneros fossem recrutados para o exército. A nova sociedade era estruturada segundo normas militares numa espécie de exército santo. Todas as terras eram compartilhadas. A produção excedente de um aldeia era usada para aliviar a deficiência em outra; "assim todas as pessoas no império podiam usufruir juntas a felicidade abundante do Pai Celestial. Se há campos, que todos possam cultivá-los; se há comida, que todos possam comer; se há roupas, que todos possam se vestir; se há dinheiro, que todos possa gastá-lo, pois assim não existirá a desigualdade em nenhum lugar, e nenhum homem estará mal alimentado ou malvestido"

A Proibições e a Hipocrisia

O novo movimento aboliu a bandagem nos pés, pela qual os pés das garotas eram apertados em pequenas, delicadas e pouco práticas formas, o que era considerado bonito entre os chineses. Aboliu também a trança que todos os homens chineses até então eram obrigados a usar como um sinal de servidão a seus mestres manchus. Isso deu aos exércitos taiping uma aparência selvagem, quando tanto os homens quanto as mulheres entravam em combate com pés desafiadoramente grandes e cabeleiras assustadoras.

Apesar de todos os ideais utópicos da sociedade taiping, a hipocrisia existia em abundância. Para a maioria dos membros do movimento, homens e mulheres eram mantidos completamente separados, mas os líderes tinham haréns dignos dos reis do Antigo testamento, para não mencionar servidores, criados e toda uma pompa apropriada às suas posições.

Buscando Apoio do Ocidente

Os taipings esperavam chegar a um acordo com os países do Ocidente. Não só compartilhavam um cristianismo nominal com os europeus, mas desde 1856 os anglo-franceses vinham travando uma Segunda Guerra do Ópio contra a China Qing.

O Ocidente considerou suas opções. Talvez fosse hora de tomar o controle total da China e substituir a corrupta e xenofóbica dinastia Qing por fantoches ocidentalizados. Por vários anos, o Ocidente considerara os taipings como cristãos decentes, merecedores ao menos de apoio moral. Quando as estranhas heresias de Hong se tornaram mais aparentes, o Ocidente voltou a apoiar o demônio já conhecido, a dinastia Qing imperial. 

Na esperança de conectar-se com seus presumidos simpatizantes no Ocidente, uma coluna de taipings saiu, em 1860, em direção a Xangai, que virara um protetorado internacional sob o controle ocidental, em 1854. ignorando as constantes mudanças de vento nas atitudes dos ocidentais, os taipings ficaram surpresos ao encontrar as forças de segurança europeias atirando contra eles das fortificações externas da cidade. Pensando que tudo fosse um engano, trezentos taipings foram mortos sem nem mesmo revidar os tiros.

Morte de Hong Xiuquan

Hong Xiuquan adoeceu e morreu em maio de 1864, mas ninguém sabe como isso aconteceu. Veneno é a causa mais provável, e a maioria dos historiadores tende pelo suicídio, mas assassinato também é aventado. Outra possibilidade é que ele tenha acidentalmente se envenenado por alguma combinação letal de elixires e poções, que tomava para aumentar o seu vigor. De qualquer forma, sua morte prematura ocorreu apenas alguns meses antes da de seus seguidores.

A rendição de Nanquim às forças do governo se deu em julho de 1864, sendo seguida por um massacre geral de seus habitantes. De acordo com o general Qing no local: "Nenhum dos 100 mil rebeldes em Nanquim se rendeu, mas em muitos casos eles se reuniram, puseram fogo em si próprios e morreram sem arrependimento. 

Legado no Cinema

Quando Hollywood começou a estudar a possibilidade de fazer um filme baseado em Devil Soldier, de Caleb Carr, a história do mercenário americano Frederick Ward na Rebelião Taiping, uma das primeiras coisas a ser mudada foi o cenário. As partes interessadas finalmente aproveitaram a ideia e fizeram o filme O Último Samurai, a história de um mercenário americano no século XIX, capturado em uma guerra civil no... bem... Japão, obviamente.

A Rebelião Taiping é o exemplo perfeito do velho adágio que diz que os livros de história são escritos pelos vencedores. A maioria dos escritores trata os taipings como pobres camponeses iludidos, que seguiam as alucinações de um louco, mas quando você vai mais fundo, é assim que a maioria das religiões começas (não a sua religião, obviamente, mas todas as outras). A única diferença entre Hong e os profetas bem-sucedidos da história é que se um professor, novelista ou cartunista desrespeitar Hong Xiuquan, multidões enfurecidas não irão pedir a sua cabeça. 

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